segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A Casa de Velhos

De repente eles chegaram lá, diante do portão de ferro da casa de velhos. A vida inteira espremida numa mala de mão. Deixaram para trás a longa teia de delicadezas, as décadas todas de embate entre anseio e possibilidade. A família, os móveis, a vizinhança, as ranhuras das paredes, um copo na pia, o desenho do corpo no colchão. Reduzidos a um único tempo verbal, o pretérito, com suspeito presente e um futuro que ninguém quer. Eles também pensaram que a velhice era destino de terceiros. Jamais suspeitaram que estariam diante daquele.

Descobriram na soleira que um passo vale por um abismo. Foram deixados ali porque outros decidiram que o tempo deles acabou. Lançados numa casa que não é a sua, entre móveis estranhos, faces que não reconhecem, lembranças que não se encaixam. Reduzidos a contar uma história que ninguém quer ouvir porque já passou.

“Nem quis me despedir de minha casa”, conta Sandra Carvalho. “Só pedi a meu filho que me trouxesse a estante com os bibelôs, um sofá, a cadeira de braço, uma mesa e meus retratos. E, desde então, vivo com o que sobrou.” Sandra veio com o marido doente. Ele morreu há oito meses. Sandra ficou. Os netos cresceram nos retratos, os olhos dos filhos tingiram-se de novas nuances, a casa foi alugada para outro. Até a cidade ganhou e perdeu. Sandra
não viu.

Há algo de trágico no portão de ferro da Casa São Luiz para Velhice. Melhor que a maioria, a instituição é limpa, decente e cheia de mimos. Igual a todas, é o último endereço, abrigo inventado para esconder os que não têm
lugar no mundo, encurralados entre o avanço da medicina que permitiu que chegassem até ali e uma sociedade que só dá valor à juventude. Também a Casa é uma anciã, com 111 anos de existência desenrolados no bairro carioca do Caju, o mesmo do cemitério, destino final de todos que estão ali.

O Visconde Ferreira D’Almeida, fundador de fé fervorosa, segue cada passo do caminho de árvores rumo ao coração do lugar. Seu olhar de bronze é onipresente na vigília dos 257 velhos que compartilham uma cidadela dividida em seis torres batizadas com nomes de santos ou de famílias quatrocentonas do Rio de Janeiro que no passado fizeram polpudas doações para garantir uma vaga no céu.

Apesar da solidez da estátua do fundador, a instituição mudou com o tempo. Nasceu antes da invenção da aposentadoria, para abrigar os operários das fábricas de tecido do aristocrata quando já não tivessem forças para moveras máquinas. Um século depois, é habitada por doutores e comerciantes, empresários e intelectuais. Gente de classe média e também de sobrenome ilustre, capaz de pagar uma suíte particular.

Quem nunca conseguiu comprar um lugar só seu no mundo ocupa uma das quarenta camas gratuitas de um dormitório arejado, mas coletivo. São operários, empregados do comércio, costureiras, lavadeiras, domésticas. Como
lá fora, entre os pobres e os ricos há uma longa escadaria. E as camas que abrigam sono e sobressaltos são diferentes.

Sandra Carvalho, mãe de três filhos, avó de seis netos e bisavó de dois bisnetos, tem a sorte de um quarto só seu. Do contrário, teria apenas um armário para guardar oitenta anos de vida. Chegou ao portão pelas mãos do filho do meio. Queria morar com ele nos Estados Unidos. Não dá. “Seria muito complicado”, convence-se. “Queria ser cantora, “fui costureira. Minha vida foi sempre tão cheia de controvérsias...” Acaricia o sorriso dos retratos no álbum de casamento, murmura: “Eu me apaguei aqui. É, me apaguei”.

Sandra, como todos, é vítima de uma esquina do tempo. Os velhos perderam afeto, amizade e calor, ganharam anos. Vivem mais que seus pais e avós. Mas vivem mais sós. A morte social chega antes da derradeira batida do coração. Os passos lentos demais para a velocidade de um mundo que não perdoa quedas. Tornaram-se provas inoportunas de que a sociedade que os deixou no portão pisa em terreno pantanoso, de que nem à custa do melhor cirurgião plástico se pode espichar a juventude para sempre. Encarquilhados, vacilantes, são a lembrança incômoda não do passado, mas do futuro de todos.

Na soleira da casa, eles decidem que querem viver. E o fazem da forma possível, até porque têm idade suficiente para compreender que o possível não é pouco. No lugar em que foram apartados do tempo, do mundo, da família, reeditam diariamente resistência e insurreição. Desejam. Um sabor diferente no cardápio, a fantasia sexual com a musa hoje mais velha que eles, o jornal do dia seguinte. Enquanto desejarem, ainda que apartados do mundo, estarão
vivos. Porque viver, para além das conquistas da ciência, é mais do que respirar.

Aos 74 anos, a comerciante portuguesa Fermelinda Paes Campos cumpre o ritual de rebeldia vestindo-se para festa todos os dias. Cobre-se de pérolas, de tecidos vaporosos. “Esses hormônios não me deixam. Estou explodindo”, confidencia. Preso a uma cadeira de rodas, aos 71 anos o
jornalista Paulo Serrado sonha que cavalga águias sobre as montanhas. “Acordo com cara de tacho, mas tudo bem.” Sem poder mais dançar, ele, que foi apelidado de Fred Astaire na boemia de Copacabana, abraça-se ao retrato de Cyd Charisse – “as mais belas pernas do cinema” – e rodopia em fantasias. Rosa Bela Ohanian, 89 anos, morou na Europa e nos Estados Unidos, foi funcionária diplomática em Washington, fala quatro línguas. Emerge da melancolia para entoar uma canção de amor em dinamarquês. “Amo por toda a vida, não por um segundo.”

Perto do final, a vida torna-se um filme em que se desejaria acrescentar personagens, eliminar cenas, avivar as cores da fotografia. Trocar a trilha de música de elevador por um heavy metal. Ou um tango de Piazzolla. Aos 86 anos, o mestre-de-obras Guilherme Coelho prefere viver de arrependimento.

Lamenta a carne com que se lambuzou na mocidade, todo ele transformado em espírito, a Bíblia ao alcance da mão. Por seis meses ficou tetraplégico, à mercê de fraldas e enfermeiras, a mente presa ao corpo. Nunca esquecerá o pavor da impotência, a enfermeira do hospital que atirou um telefone contra seu corpo paralisado. Quando o dedão do pé moveu o lençol, Guilherme concluiu que era um milagre. Deus lhe havia concedido tempo para preparar-se para a morte. Guilherme decidiu então a canção de seus derradeiros dias.


A expulsão do mundo

Noêmia Atela veio para não ficar. Reedita todos os dias seu compromisso com a resistência. Resumiu a vida aos 30 passos que separam a porta do apartamento do banco no fim do corredor. Senta-se lá, posicionada entre o elevador e o telefone. Por um ou por outro espera chegar a alforria dos filhos. Revela sempre o mesmo segredo: “Não conta para ninguém. Na semana que vem eu vou embora. Já pedi para minha filha trazer a mala”.

“Lá fora” é como batizaram o mundo que ficou, quando na verdade ficaram eles. Uma terra onde já estiveram e não mais estarão. Vieram, quase todos, sem escolha. Primeiro perderam o marido ou a esposa, depois era o lar que já não conseguiam administrar, em seguida o apartamento dos filhos que se tornava apertado, por fim o mundo inteiro transformava-se numa placa gigante de entrada proibida. Ficavam sem lugar. Restava a casa.

Chegaram ao portão com os farelos da dignidade, a mala com os cacarecos mais queridos e os retratos da juventude, do tempo em que os filhos eram crianças e lhes obedeciam, da época em que tinham as rédeas da vida nas mãos e mãos que não falhavam ao agarrar o corrimão da escada. “É só por um tempo, até você se recuperar”, diziam os parentes. E, pela última vez, fingiam acreditar.

“Eu vim como hóspede, para ficar alguns meses. Nem fui eu mesma quem decidiu. Acho que tiveram uma boa conversa e resolveram experimentar. Depois a hospedagem foi se estendendo e agora já espero morrer aqui”, conta
Maria Prado, funcionária pública. E, com o olhar de um século de malícia, diz: “Espero que sua hospedagem não se estenda...”.

A maioria dos habitantes da casa tem a porta de saída vetada. Só saem com autorização. Quem decide o ir e- vir são os parentes ou os médicos. Podem se perder, ser atropelados, roubados. Para além do portão tudo vira risco. Mesmo para quem tem permissão, lentamente o desejo de ver a cidade vai morrendo, se extinguindo aos poucos. Até romperem por completo o cordão umbilical. A casa vira então o próprio mundo, as paredes impregnadas de uma segurança implacável. “Eu às vezes penso em ir lá fora. Mas o que faço lá fora velho?”, indaga Guilherme. “Só me sinto seguro aqui dentro.”

Da primeira vez, Paulo ficou apenas um mês. Solteirão convicto, vivia no apartamento próprio em Copacabana, auxiliado por acompanhantes desde que um acidente imobilizou as pernas e um infarto atropelou o coração. Quando
uma irmã decidiu passar um mês na Europa, pediu a Paulo que se transferisse para a casa. “Só para que eu fique tranqüila”, disse. Paulo foi.

Depois voltou para Copacabana. “Então me dei conta. Eu estava andando com minha bengala e vi um vulto enorme saltar por cima do balcão do café. Era um dobermann”, conta. “Quando estava voltando para o apartamento, a desgraçada de uma dona de casa batia papo com a comadre e, ao lado, o dobermann sem coleira. No outro dia, havia um dobermann e um pit bull. Pensei: se esses vigaristas vierem para cima de mim, o que eu faço?”

Paulo ligou para a loja de armas disposto a comprar uma pistola para se defender. “Aí lembrei de meu avô. Ele falava que eu era muito esquentado para ter arma. Acabaria fazendo uma besteira”, conta. “Distribuí os quadros, o liquidificador, a máquina de lavar roupas, aluguei o apartamento e voltei para cá. Tive de aceitar minha impotência. Não tenho mais competência física para andar lá fora.”

Se o mundo é perigoso para todos, para os velhos torna- se campo minado. Cada buraco na calçada pode ser fatal. cada degrau a mais, a promoção da bengala para a cadeira de rodas. Os pés cansados não são mais capazes de alcançar o ônibus onde o motorista bufa de impaciência “com esses velhos que não pagam e ainda atrasam a gente”. As pernas não obedecem ao comando da adrenalina diante das crianças que os tornaram alvo preferencial dos assaltos no confronto entre dois vencidos, a infância abandonada e a velhice desvalida. É assim que vão sendo expulsos.

O que mais temem não é morrer, mas cair. “Descobri que estou numa ilha cercada de mar por todos os lados”, resume a portuguesa Fermelinda. “Cheguei há dezoito meses e tenho medo de sair. Quando saio, me sinto um passarinho voando. Mas não gosto mais de voar. Se voar posso levar um tombo.”

Quem ainda caminha com as próprias pernas, como Fermelinda, perambula pela casa como se estivesse numa cidadela medieval. E teme o segundo andar do Pavilhão São Joaquim mais que o Juízo Final. “Você já foi lá?”, pergunta Fermelinda. “Melhor não ir. Se fizer questão, tudo bem. Mas não me chame.”

Lá estão os que caíram e nunca mais levantaram. Longas enfermarias onde a demência pode ser um destino melhor do que a lucidez. Restos humanos que deixam escapar a comida da boca, esboçam gestos do passado que já não fazem sentido, chamam pelos que partiram. O segundo andar do São Joaquim eleva-se como um purgatório de alma viva, entreposto entre a instituição e o cemitério. Os moradores da casa fingem desconhecê-lo. Tanto quanto se pode ignorar a nuvem escura que precede a tormenta.


As horas vivas

Rosa Pimentel caiu. Do terceiro para o segundo andar do São Joaquim. Um andar apenas, o despenhadeiro. Só mexe os braços, a Rosa. Mas tem boca. E aos 88 anos não se cansou de reinventar a vida. Deitada numa das camas do dormitório dos que perderam quase tudo, inclusive o juízo, Rosa mantém-se na superfície rimando. Emenda um verso no outro, liberta-se. “Não sei como acontece, porque nunca tive um livro de poesias”, espanta-se. “Simplesmente elas vêm em meu pensamento.”

Sem amor nem dinheiro, sequer parentes, agora também sem movimento, Rosa transformou a vida em versos. “Nasci em 18 de outubro de 1913, num dia de sábado, às 4h20 da tarde, na Rua das Laranjeiras, 57, telefone 357.” Vai misturando a infância e as rimas: “Hoje não sou ninguém, sou apenas de quem me quer bem. A maior quinta em Portugal era de meu pai. Ainda lembro das vacas Formosa, Ferreira, Fidalga, Bonita... e do cachorro branco com rodelas amarelas de nome Diamante”.

Estende os braços, a Rosa, ciente de que ficará viva enquanto conseguir encaixar uma rima na outra, afinal não é assim mesmo, um verso triste num alegre, uma perda num ganho, um dia depois do outro?

Noêmia assoma na porta do apartamento com uma folha de caderno amarrotada de tanto que aperta entre as mãos. Lá estão os dias da semana, de segunda a domingo. De posse de sua bússola, Noêmia navega. “Hoje é quartafeira?”, pergunta. “Então é dia da minha filha Georgete me visitar. No sábado é minha neta que aparece.” E volta para o quarto acreditando que tem o tempo entre as mãos.

O tempo na Casa é outro, regido pelas refeições, os ponteiros do relógio marcando o café da manhã às 7h30, o lanche às dez horas, o almoço ao meio-dia, o outro lanche às 14h30, a janta às cinco da tarde. Comem nos quartos, se moram sozinhos, nas varandas dos dormitórios, se dividem o espaço. Já houve um refeitório para todos, mas logo se descobriu que nem na velhice os ricos querem se misturar com os pobres. Cedo os pagantes se irritaram com a falta de etiqueta dos gratuitos, com a sua pressa, aquela ânsia de quem sabe que a comida pode mesmo fugir do prato.

O refeitório foi fechado, e as refeições passaram a ser servidas nos nichos que cabem a cada classe para que a fome alheia não ofendesse os olhos de ninguém. Por própria conta os moradores que não estavam ali por caridade decidiram reeditar o que há de pior no mundo que deixaram. Passaram a dividir a casa entre Zona Sul e Zona Norte, os de lá não se misturando com os de cá.

Sem muito mais para esperar, os velhos esperam pela comida. Organizam suas vidas em intervalos, entre um pão com manteira e uma fruta, entre a pizza e a sopa. E assim comida ganha importância desmesurada, vira o assunto de todas as reuniões da ouvidoria. Guilherme inventa uma cruzada contra a cenoura, revoltado contra o tubérculo que teima em ocupar sua vida ansiosa por outras cores, ainda que seja o tom desmaiado da batata. “Não suporto mais cenoura. É cenoura com guisado, cenoura com frango, cenoura na salada. Por que não batata?”, rebela-se publicamente. “Estou ficando laranja.” E imediatamente ruborizase, ganha nuances de beterraba.

Vicente Amorim suspira por pratos mais delicados, reclama sabores sofisticados, temperos que partiram. Na verdade, o que não suporta é que decidam seu cardápio, metáfora pobre do livre-arbítrio que perdeu. “No dia em que passei a procuração para a minha filha, assinei a abdicação da minha personalidade. Primeiro, veio a euforia. Depois caí em mim”, conta. “Não ia mais me preocupar com o banco, saber se a minha conta estava no azul ou no vermelho. Nessa hora perdi a independência. E não perdi o juízo.”

É esse o cárcere do homem sentado sempre no mesmo banco da Casa, protegido pelas asas de um anjo. Um lugar tão cativo que, quando se aproxima com sua cadeira de rodas, quem lá estiver usurpando imediatamente se levanta. “Nunca imaginei que estaria aqui. Clinicamente não sinto dor alguma. Mas sinto uma angústia que não sei explicar, que não tenho palavras para pôr num dedo.”

Solitário é Vicente, tão necessitado de companhia que de todos se afasta. Doce Vicente, que aos 97 anos ainda se ilude que é azedo. “Eu sou um sujeito metido a besta. Me sinto melhor que os outros mesmo sabendo que é um preconceito burro. E por isso me isolo”, confidencia. “Então comecei a achar que este banco é meu. Fico na companhia de um passarinho que desce da árvore, do sol que está rastreando o edifício. Observo o sujeito que trabalha, o que finge que trabalha, o que ganha no mole... eu conheço a vida desta Casa inteirinha. Então acredito que estou sozinho no meio da multidão. E fico escutando o silêncio.”

Sandra Carvalho acostumou-se com o silêncio. E com os dias. “A acompanhante chega com o café. Depois eu desço. Às onze horas subo para esperar o almoço. Depois descanso. Aí desço. Depois subo para a janta. Às terças e quintas faço fisioterapia para o joelho. Vou vivendo”, conclui. Da cômoda, filhos e netos lhe sorriem dos retratos.


O tempo das mentiras

Contaram para todo mundo que eles queriam descansar. “A mentira é também um estado de satisfação”, explica Vicente Amorim, debaixo das asas do seu anjo de pedra. Descansar é tudo o que ele não quer. E quem desejaria, com a eternidade espreitando logo ali, na próxima curva?

A palavra asilo tornou-se cruel demais para um tempo que oculta sua brutalidade com palavras. Inventaram a expressão “casa de repouso” para abrigar velhos supostamente cansados da vida quando é o mundo que se cansou deles. “Isso é um asilo, sim. De luxo, mas um asilo”, inflama-se Paulo. “Se quando eu era jovem alguém tivesse me falado que eu estaria aqui, diria que o sujeito era maluco. Terceira idade o cacete!”

Rosa Bela ergue-se do banco, as mãos crispadas como um personagem de tragédia, para dizer que não quer sossego. “O que está faltando é aquele entusiasmo de gente jovem incentivando os velhos a se animar. Não deixar os velhos sentados só olhando, como se participassem de uma história antiga. Não é uma história antiga. É real”, diz. “Por que não podemos participar?” E volta a sentar-se, os olhos brilhantes, encharcados de lucidez.

Ergue-se do banco mais uma vez, subitamente animada pela rara chance de ser escutada. Ela, que sempre teve tantas idéias sobre tudo, condenada a preencher as horas vazias da casa com o eco solitário de palavras só suas. Gostaria de revelar ao mundo sua conclusão atrasada. E agora que finalmente descobriu o que faltava não tem ninguém para ouvi-la. “É o seguinte. Um autor escreve bem. O que vem depois já leu o que ele escreveu. Então fica tudo parecido. E assim tem acontecido com tudo. Não tem mais aquela sensação de here is a new thing. É isso que está faltando no mundo. A new thing para valer a pena.” Sentada a um metro de Rosa, a moça que cuida do andar em noites intermináveis preenchidas por insônia e gemidos acha que Rosa é doida.

O tempo das verdades

Povoada por mais de 20 mil anos de vida, somado tudo, a casa respira, transpira, parece que se mexe. Desde a fundação, a administração foi passando de herdeiro a herdeiro por cláusula testamentária até chegar à embaixatriz Regina Bittencourt, uma grande dama de quase oitenta anos, do tipo amamentado em francês e desmamado em incursões pelo mundo. Dona Regina é herdeira de duas instituições em extinção: a aristocracia e a caridade. Modernizou a Casa abrindo as portas para os pagantes, já que as doações foram se extinguindo junto com as grandes fortunas. Seguiu com a tradição familiar, a filha e um neto já destinados a garantir a continuidade.

A instituição é cercada de santos e nobres por todos os lados. Cada fonte ou canteiro tem nome, e bem comprido. Insólito cenário para descobrir que uma das poucas vantagens da velhice é a extirpação de um tumor das relações humanas: a hipocrisia. Mesmo quando flagrados pelas armadilhas do cérebro cansado, os moradores têm uma objetividade de lâmina. “Eu não gosto que me chamem de idosa. Sou velha mesmo!”, diz a centenária Maria Prado, com uma boca que dispensou dentes e cinismo. “Onde você já viu velha bonita? Pode ser triste, conformada ou alegre. Alegre mesmo penso que não tem nenhuma. Há as conformadas e as menos conformadas. Mas bonita, nenhuma.”

Chegaram à idade em que todo fingimento é descartável como um apêndice. Talvez por isso seja tão conveniente permanecerem trancados lá dentro. Todo fim de mês a casa faz uma festa para os aniversariantes. O evento é patrocinado por socialites cariocas em suas missões de benemerência. Há alguns anos, elas traziam personalidades para fazer shows. Com o tempo, desistiram. Uma das vítimas foi Pelé. A emergente Kiki Garavaglia, de 54 anos, morre de rir ao contar que o rei cantou uma “musiquinha para os idosos”. Indiferente à majestade, uma das velhas gritava: “Canta outra coisa. Mas tá muito ruim”. Pelé descobriu na casa que tinha voz de Edson Arantes do Nascimento.

Essas festas mensais produzem cenas implacáveis. Gisela Amaral chega sempre atrasada. Quando chega. Por isso, quando os velhos descobrem que foi ela que tirou seus nomes para presenteá-los, caem imediatamente em depressão. Aos 61 anos, com corpinho de 41, ela irrompe vestida de mostarda da cabeça aos pés, com Bombom e Banana a tiracolo. Bombom é o motorista e Banana o cachorrinho. Anunciada pelo microfone: “Gisela Amaral, diretamente de Nova York. Olha o sapatinho da Gisela combinando com a roupa”. E Gisela mostra o sapatinho. Os velhos ficam boquiabertos. Viveram para isso.


A esgrima dos sexos

Noêmia viveu 86 anos para constatar mais uma duvidosa conquista das mulheres: a velhice é feminina. “O quenão tem aqui é homem”, informa. “Quando aparece um, é uma alegria.” Na casa, há três mulheres para cada homem. Se elas são mais longevas, parecem condenadas à solidão, numa subtração que o cadastro da instituição demonstra piorar a cada ano.

Mais que a estatística, o que impede o amor do outono é o que já atrapalhava os romances em estações mais ensolaradas. Elas logo descobrem que depois de velhos os homens continuam levando tudo muito a sério, especialmente a si mesmos. Não fosse por esse detalhe atávico da personalidade masculina, é provável que irrompesse luxuriante primavera naquele miolo de mundo. “É ridículo namorar nesta idade”, sentencia Guilherme. “Não gosto de papadas”, desdenha Paulo. “Nem de múmias.”

Diante da aspiração impossível, Paulo prefere consumar suas fantasias sexuais embalado pelas fotos e pelo vídeo de Cyd Charisse, a “beautiful dynamite” de Fred Astaire, cujo lugar de musa inalcançável o salva para todo o sempre de conhecer a inevitável consistência de suas “papadas”. Cyd Charisse, a de carne e osso, já passou dos oitenta e é provável que as tão suspiradas pernas exibam hoje uma hidrografia de varizes. A de Paulo segue com vinte, trinta, dono absoluto que é do objeto do seu desejo.

Ainda que os pés não andem com a mesma firmeza, as mulheres seguem com eles plantados no assoalho. Práticas na velhice como o foram na juventude. Suspiram pelos galãs das novelas, mas jamais esquecem de olhar para os lados em busca do possível. “Estou apaixonada. Sinto queele fica nervoso quando me vê”, desmancha-se Fermelinda. “Meu sonho é um dia dividirmos uma suíte aqui na casa.” Fermelinda arruma e desarruma a cama várias vezes por dia, quando tudo o que queria era fazer o mesmo, mas bem acompanhada.

Enquanto o homem que ama permanece distante como o Cristo Redentor, o Rio de Janeiro de Fermelinda tem sempre quarenta graus. “Não existe mulher frouxa nem fria. Sabe o que é mulher fria? É ela não ter inteligência para o amor”, ensina. “E o homem nunca morre. Basta ter uma mulher que saiba prepará-lo.” Nesta altura, Fermelinda já se abana com um leque dos grandes.

O termômetro da casa elevou-se perigosamente há quatro meses, quando o francês Robert Regard despontou no portão a bordo de um ainda respeitável ramalhete de músculos. Aos 62 anos, um garoto para os padrões locais, cuja média se situa em torno dos 85 anos, ele se achou sem teto depois do epílogo do romance de 24 anos com uma cabeleireira brasileira.

Ultrapassou o pórtico um pouco assustado, mas logo descobriu que não havia pomada melhor para os arranhões de sua auto-estima. Plantou-se no pátio de calção e camiseta cavada. A cada bíceps que pulava nos braços, um coração feminino completava um salto triplo. Ainda por cima, todos os peitorais vinham com sotaque. “As mulheres adoram quando eu falo francês”, conta.

O Alain Delon da casa foi coroado Mister França em 1967. Fez carreira no halterofilismo europeu. Aos 37 anos, deixou a mulher e cinco filhos e veio se aventurar no Brasil. Abriu dois supermercados, faliu, foi gerente de outros tantos, acabou sem nada, exceto por uma filha brasileira e um amor incondicional pela pátria adotiva. Estufa todo com o clamor que provoca, mas nem sequer cogita a possibilidade de um affair com uma das companheiras de exílio. “São minhas amigas, não iludo ninguém”, esclarece. “Sempre tive moças mais novas correndo atrás de mim. Eu me vejo ao lado de uma mulher de quarenta, 45 anos. Por isso mantenho meus 82 quilos, não janto, faço exercícios. Estou inteiro.”

Sempre mais pragmáticas, as mulheres. Não é à toa que vivem mais. Sem par nos bailes da Casa, evolucionam pelo salão com as amigas, as enfermeiras, as acompanhantes. Vêm de uma geração em que o mundo feminino era circunscrito aos lares, e esse estágio de uma existência inteira as ensinou a viver entre paredes. De certa forma, perderam um pouco menos e um pouco mais, na medida em que não sofrem pelo que não conheceram.

Eles, não. Seu mundo era o de fora, donos de todas as ruas, no controle de cada passo. Postam-se carrancudos, temerosos “de dar vexame”, recusando-se a esgrimir com as pernas que têm. Suportam menos as limitações da velhice, dependentes das moças muito mais jovens que estão ali não por sua capacidade de sedução, mas para trocar suas fraldas. Mais devastados pelos ventos da melancolia, os homens definham enquanto elas tocam gaita, piano, fazem versos.

“Eu caí, toquei, cantei, levantei, chorei, rolei. E agora estou aqui. Acordo com as músicas todas”, resume a cantora lírica Mariluza Prista, aos 77 anos. “Não há vantagem nenhuma em chegar a esta idade imprestável, dependendo dos outros até para tomar banho”, retruca o dentista Fernando Ferreira, de 84. “Nem fumar e beber posso mais. Estou esperando a morte. Todo mundo deveria viver só até os cinqüenta anos.”

Na sacada, Noêmia tomou a decisão de só ouvir o que quer. “Ainda bem que sou surda”, diz. Subitamente ilumina-se. Diante dela desenrolam-se cenas de sexo explícito, gemidos escandalosos. Desta vez, Noêmia escuta muito bem. Solidária, bate na porta da vizinha de apartamento: “Corre aqui! Vamos ver os gatos cruzando no telhado”.

Os amores possíveis

Na Casa só o amor dos gatos tem ruídos. O amor dos velhos é encabulado. Trazem da rua suas vergonhas e lá dentro eles viram cimento. Adyr Galvão Bueno e Gabriela Svozil tecem há anos um romance de sussurros, temerosos de ofender o pequeno mundo em que vivem de caridade. Tentam se tornar invisíveis para escapar dos olhares feios dos que acham que a possibilidade de amar se encerra no parto da primeira ruga. Repetem suas cenas, lado a lado no banco, quase pedindo desculpas, sem coragem de pegar na mão, matando o beijo antes que aconteça. Mesmo assim, alguém sempre aponta um dedo artrítico não pela idade, mas pela pequeneza: “Ridículos”.

Só eles percebem beleza na forma trágica pela qual se conheceram, ela caída sobre a mesa do café, o estômago embrulhado. Ele tão magro que de perfil e de frente quase não há diferença, carregando-a com os braços descarnados para uma das camas do dormitório dos pobres. Desde então são vistos sempre juntos, sempre tímidos. Ela viúva de um homem que falava pouco, ele à espera de uma noiva que viajou para a Bélgica décadas atrás e jamais voltou. Não escapam da casa para passeios porque Gabriela só pode empreender fugas de poucos passos. Nem Adyr lhe dá flores porque não é permitido arrancálas dos canteiros.

Jamais compartilharão uma cama, falta-lhes o dinheiro para pagar uma suíte particular. Ao entardecer, quando toda a população da cidade de velhos se recolhe para a segurança das paredes, Adyr e Gabriela vivem os momentos mais íntimos do romance. Vão dormir afogueados, temerosos de ser expulsos, crianças de colégio interno experimentando brincadeiras proibidas no recreio. Da varanda do dormitório masculino, aos 68 anos, Adyr sacode uma toalha para que os olhos cansados de Gabriela o adivinhem na derradeira despedida.

Em outra cama do pavilhão, Manoel Matias pensa em Maria Socorro. Preencheram a ficha de ingresso na casa, anos atrás. Registraram, singelamente: “Pela primeira vez vamos dormir separados”. Fizeram questão de acrescentar: “Permaneceremos sempre juntos na perspectiva de uma vida feliz”. E despediram-se, na porta cada qual de seu dormitório, depois de sessenta anos dormindo abraçados. Na cama claudicante que deixaram para trás haviam dividido a dor dos filhos que não vieram, do negócio próprio que nunca se realizou, das mãos de Maria se acabando nas panelas da casa do patrão, das desditas de Manoel no balcão de outro dono.

A cada manhã, Manoel e Maria voltavam a se unir. Ele com 86 anos, ela aos 94. Gastavam os dias agarrados um no outro para compensar o vazio de cada noite. De repente ela adoeceu, não mais apareceu no jardim. Manoel então acordava e, alinhado e cheiroso, visitava sua Maria. Ela, cada vez mais calada, foi ficando fora do alcance de Manoel. Mesmo assim, ele não desistiu de tocá-la. “Eu não reclamo. Nunca conseguimos nada para nós, mas passamos a vida sem brigar. Foi amor à primeira vista”, explica. “E eu sempre deixei que ela decidisse tudo.”

Manoel segue visitando sua Maria, que em maio decidiu que era hora da partida. “Ela está cada vez mais calada, quase não diz nada”, Manoel conta sem queixa. É realista em todo o resto, menos para a morte de Maria. Para ela se banha, penteia os cabelos de polvilho. Para ele, Maria é sempre linda como naquele dia em Copacabana, quando ao bater os olhos nela o coração lhe saltou do peito e não mais lhe pertenceu. Sempre que Manoel senta na biblioteca, reserva um lugar ao seu lado. É o lugar de Maria. Talvez, arrisca Manoel, ela se anime e venha.

Aos 87 anos, Joaquim Cysneiros Vianna vai todo dia dar um beijo em Aurea. E todo dia Aurea constata que Joaquim foi embora há muito. Advogados, ele e ela. Brilhante, Joaquim. Aurea, independente quando as mulheres recém pressentiam a liberdade. Uma vida construída em manifestações de protesto, viagens à Europa, um cotidiano de leituras e longas conversas. Há sete anos Joaquim começou a partir devagar. O homem com quem compartilhou a vida fora seqüestrado pelo mal de Alzheimer. Logo a estrela dos tribunais era um menino, sem modos à mesa, escapando do banho, fugindo de casa.

“Reage”, cansou-se de gritar Aurea. Ele já não a ouvia. Foi o primeiro a chegar à Casa, trazido pela filha. Há um ano veio Aurea, as pernas robotizadas pela artrose. Recusou- se a ficar no mesmo apartamento do marido. “Ele não está mais aqui, está preso em si próprio. Não vive, vegeta. Transformou-se em outra coisa e é muito duro vê-lo assim”, diz. “Tudo o que ele faz é me dar um beijo e dizer ‘é’, a única palavra que sobrou.”

Agora é outra a mulher que cuida de Joaquim, a acompanhante Maria José Ferreira, que aos 46 anos passou a temer a própria velhice. Passa creme na pele de Joaquim menos por salário e mais por afeto, combina as roupas, faz com que participe da agitada rotina de atividades da casa, mesmo que seja só com o corpo, para não ir embora de vez. Todos os dias a filha Angela liga, sempre às treze horas, para obrigar o pai a falar. Ainda que seja só para ouvir uma seqüência de “é”.

Angela é uma raridade na casa em que as visitas são mais ausentes do que os moradores desejariam. Aos 59 anos, solteira, um filho adulto, a educadora Angela surge no portão duas vezes por semana e a cada aparição faz a alegria do andar inteiro com delícias de sua cozinha. Quando o pai e a mãe começaram a definhar, primeiro foram morar com ela. As dificuldades foram tantas e tão terríveis que precisou abandonar o emprego na universidade. “Fiquei com um complexo de culpa miserável quando tive de trazer meu pai para cá. Só mais tarde fui percebendo que não tinha outro jeito”, conta. “Depois veio minha mãe, também já não havia maneira de dividirmos o mesmo espaço. Ela sempre foi independente e autoritária. Tinha perdido a casa, o marido e a vida e estava me deixando maluca. O médico falou que, se eu não tomasse uma decisão, quem acabaria se terminando era eu.”

Aos 88 anos, Aurea sobrevive pela desistência do verbo querer. “Gostaria de ficar com minha filha, mas entre querer e poder há uma distância”, diz. “Para não me decepcionar, procuro não desejar nada. Aprendi isso aqui. Aceitei. A pessoa que vive aprende vivendo.”

Para Aurea restou a lucidez. Nem sempre uma bênção.


A luta de classes

A velhice rica pode ser mais doída, porque feita exclusivamente de perdas. Tudo escapa das mãos, principalmente poder e escolha, do cardápio ao lugar em que estão. Impotentes para eleger com quem dividir dilemas e convívio. Humilhados na dependência de estranhos até para tomar banho. Os pobres levam para o portão uma mala com menos roupas e mais capacidade de reinvenção. Reduzidos ao mínimo desde sempre, chegam ali versados na arte de agarrar o possível. Seu lamento sempre morreu no peito.

A costureira Rossi Rodrigues descobriu que se aceitasse o mundo dos vivos acabaria partindo para o dos mortos, fatalidade cuja possibilidade sempre lhe pareceu de muito mau gosto. “Eu, hein!”, diz ela, com uma careta. Veio há dezessete anos porque não é mulher de morar com filho, se enfiar no canto de nora. Usa a Casa como se fosse um hotel. E sem ter de preocupar-se com o que lhe atormentou por toda a juventude, casa e comida, tem mais tempo para
se meter onde não deve.

Aos 72 anos, compositora de música brega, do que Rossi gosta mesmo é remendar o mundo. Realiza na velhice o sonho da mocidade, tornou-se respeitada dentro e fora da casa. Bem informada o suficiente para lembrar aos ricos, na rispidez de combates inevitáveis, que se não fossem os pobres a casa perderia a filantropia. E com ela a isenção de impostos.

Bem cedo, pela manhã, escuta uma seqüência de programas de rádio para acertar sua agenda. Não há protesto em que não esteja de bandeira em riste, denúncia que não vá investigar com seus próprios olhos, debate em que não dê palpite, palestra com a qual não aprenda ao menos uma palavra nova. Participa das pastorais da saúde, dos presidiários e de mais quantas puder. Esteve na Candelária, na Santa Genoveva, no Fórum Social Mundial. Em Brasília mais de uma vez.

E, assim, não se cansa de assombrar a Casa com uma coleção de camisetas, a mais chamativa delas com as letras do MST. “Eu vim para cá para viver, não para morrer”, discursa. Olha-se no espelho, confere as rugas, apalpa uma por uma para ter certeza de que estão todas no lugar: “Adoro estas minhas rugas. Cada uma um filho, um neto, a minha vida”.

Quem vê a devota de Santa Edwiges na missa, joelhos esfolando-se no chão, nem desconfia do que se passa no interior daqueles cabelos salpicados de cinza, naquele coraçãozinho que bate candidamente sob o vestido floreado de velhinha. “Olha, vou dizer”, e diz. “Se eu não fosse tão católica, jogava uma bomba no Planalto.”

Suave como uma pimenta-do-reino, ela dá uma agitada “na companheirada”. “Embora dar uma volta”, chama. “Ah, Rossi, já programei a minha vida. Dormitório para dormir, refeitório para comer, capela para rezar, enfermaria para quando ficar doente. E depois o cemitério do Caju.” Cruzes!!!! Rossi não agüenta. Se vai novamente. Empunhando a bolsa, sempre atrasada para o mundo lá fora. “Se fosse uma gatinha, você parava, né?”, xinga o motorista do ônibus que a ignora no ponto. “Não tem mãe não, meu filho? Não vai ficar velho não?” E já saca a caderneta para anotar a placa.

Deixa Santinha e Sebastiana, as companheiras de quarto, a rezar seus terços. Aos 92 anos, Santinha nem liga. Era Dulcelina Maria Corrêa 78 anos atrás, quando entrou na Casa para engomar camisas. Tinha catorze anos, ainda brincava de roda. Aconteceu de ficar ali a vida toda, dentro daqueles muros, na companhia muito ilustre do visconde em suas várias poses de bronze.

Amou o carpinteiro Joel enquanto ele erguia mais uns pavilhões da instituição, casou-se na capela revestida por azulejos da Bélgica sob as vistas de São Luiz, o rei dito santo da França, perdeu a virgindade e dois dos três filhos sob aquele teto vetusto, levou a terceira filha, de nome Maria Luiza, ao altar, velou o marido e, por fim, ficou velha.

Só perceberam o ocorrido em 1957 e, desde então, de funcionária Santinha foi promovida a residente e, por tudo aceitar, foi revestida de santidade ainda em vida. “Não é que fiquei velha aqui?”, admira-se ela, enquanto dá comida a uma legião de gatos vadios e pombos piolhentos. E não se admira com mais nada.

Noêmia, não. Se admira – e muito – que a instalaram na casa depois de uma reunião com ata e tudo lavrada pelos sete filhos após concluírem que ela andava impossível. “Sua mãe quase foi atropelada”, ligava um vizinho. “Ela está tentando comprar cigarros de novo”, avisava o dono da padaria, ciente do enfisema pulmonar causado pelos três maços diários.

Chegava ao requinte de maquinar roteiros de terror para ganhar visitas e atenção. Como no dia em que ligou agonizante para avisar que havia sido agredida pela empregada. E lá estava ela estirada no chão com o peito ensangüentado de massa de tomate. O calmante que o médico receitou para Noêmia foi tomado por uma das filhas quando a encantadora tirana foi passar uma temporada abreviada em sua casa.

“Não me conformo de ficar aqui, olhando para o nada”, esperneia. E logo convence uma boa alma a levá-la até o telefone, onde, com a lista na mão, liga para todos os sete filhos e mais alguns netos para lembrá-los pela enésima vez de que está de mala pronta.


A juventude roubada

A casa que para Noêmia é a morte, para uma estirpe de mulheres não só é a vida, como a porção mais generosa do seu minguado naco de existência. Elas sonharam com a instituição em cada dia roubado da mocidade. Aspiraram à chegada do momento em que seus braços não pudessem mais lavar, passar, cozinhar, esfregar, em que nada mais restasse além das paredes do asilo para conter os suspiros de exaustão. Fazem parte da dinastia em que a vida é que foi triste. E a velhice é bênção porque, mesmo que quisessem, ninguém mais poderia explorá-las. Sugadas de tudo, não há mais nada a arrancar de seus corpos. Então são alforriadas para morrer.

Laurentina Francisca de Jesus é rebento dessa gênese. Um fiapo de gente com a pele rasgada pela seca como osertão baiano de onde veio. “O meu plano foi uma coisa delicada que Deus me deu. Estava traçado aqui, nesta casa, o lugar onde eu seria feliz”, inicia sua narrativa na prosa poética que parece germinar já na placenta dos sertanejos, como se a delicadeza das almas fosse uma compensação pela brutalidade da terra.

“Fui parida em Amargosa, cidade que já foi Nossa Senhora do Bom Conselho e depois trocaram de nome, o porquê eu nunca soube. Sem pai nem mãe, trabalhava na roça que nem homem. Um dia me levaram para o Rio de Janeiro e segui trabalhando sem ganhar um tostão. De lá fui para outra casa e também não me pagaram nada. Tive até uma idéia ruim de me matar, mas então rezei: ‘Minha Nossa Senhora, com esse menino que está em seus braços, me ajude. Me dá uma casa de repouso, ou com vida ou com morte’. Então Deus me deu esta casa. E, desde então, sou feliz.”

Simples assim é Laurentina, que não perde nada desde o dia em que se soltou da gaiola, virou passarinho. Nem um passeio, nem uma festa, nenhum dos programas da casa passará sem que por ele passe Laurentina. Tudo conheceu depois de velha, do sossego às areias da praia. Aos 84 anos só não chegou ao Pão de Açúcar porque na hora faltou-lhe a coragem para pular no bondinho. Já tinha alcançado tanto, achou que saltar sobre os morros era excesso de ousadia.

Dela tiraram quase tudo, até mesmo o cabelo, seu único enfeite que uma patroa decepou para transformar em peruca. Nem sequer votou alguma vez na vida, já que ficou desconhecida das letras e ninguém fez o favor de lhe contar que podia assinar com o dedo. Nunca conheceu a dor e a doçura de um homem, porque aos três trastes que lhe apareceram deu a mesma resposta: “Não quero nem com açúcar”. Sobrou para Laurentina essa resignação mesclada de sabedoria que mantém vivos os de sua sina.

Sobre a cama de seu descanso, mulheres como Laurentina acomodam os primeiros brinquedos de sua existência, a ironia dessas bonecas tão tardias que se atrasaram na meninice e só chegaram no fim da vida. Esse simulacro dos filhos que não tiveram, ocupadas demais que estavam criando os filhos dos outros. “Criei os filhos e netos do meu, quando cheguei lá o menino era pequenininho. Quando saí já era casado. Tenho saudade dele, queria que viesse me visitar”, conta Amália Bernardina Gomes, aos 91 anos. “Tudo que era dinheirinho que eu ganhava dava para o patrão botar na poupança. Quando já tinha um lucrinho gordo, ele me botou no carro e me deixou aqui. Meu sonho era vir para o asilo, não tenho ninguém por mim. Nem visita tenho, meu único parente é Deus.”

Passa os dias, Amália, também ela sertaneja, a tomar conta de Denise, a boneca desbotada que alguém lhe deu. “Oi, minha filha, mamãe tá aqui!”, cumprimenta, toda ela desvelo e desprendimento, mulher que já nasceu surdamuda de queixas. “Graças a Deus não tenho o que dizer. Minha vida foi muito boa. Nasci para morrer.”

Menos conformada é Maria de Lourdes Silva, nome que ninguém conhece porque por todos é chamada de Lourdinha Lavadeira. Parece até que já nasceu esfregando roupa na pedra, o sabão entranhado na pele como perfume único da vida. Aos quatro anos foi tirada da mãe para fazer companhia a uma filha de senhorinha. Depois seguiu neste destino, criou José Augusto e José Flávio em Minas, Ana e Alexandre no Rio de Janeiro. E quando um dia ficou doente restou para ela o asilo.

Sem escolha antes como agora, Lourdinha ficou ali mesmo. Aos 62 anos arranjou um jeito de ganhar uns trocados lavando a roupa que as mais ricas preferem ver batidas pelas suas mãos, as linhas da vida já meio apagadas pelo rio de água que dia a dia escava uma erosão em seus dedos. “Vou lavando as minhas roupinhas, ganho um dinheiro para comprar umas frutas, uns doces, assim, qualquer coisa extraordinária que me dê vontade de comer.”

Sempre sozinha, a Lourdinha, porque é, no seu próprio dizer, muito perfeccionista. Revolta-se com as companheiras de dormitório que penduram roupas pelas camas, brigam umas com as outras, saem do banheiro com a calcinha pingando na mão. Justo ela, que sempre gostou de tudo tão certinho, foi lhe acontecer de viver na desordem da multidão. “Sabe, tenho este feitio. Estico bem a roupa, sacudo as mangas, passo os dedos de cada lado para alisar”, orgulha-se, faz o gesto e assim se mantém no prumo, dona que é pelo menos do friso impecável de suas camisas, das nervuras de cada blusa, no único momento em que tem um destino nas mãos. Mesmo que ninguém tenha percebido, Lourdinha guarda a certeza de que não há neste mundo roupa tão bem lavada como a sua. E isso lhe parece suficiente.

À sua espera, no carrinho, a Chiquinha, sua filha de plástico e única companhia. “Até rir pra mim ela ri”, fala toda coruja. “Parecida comigo é essa minha menina.”


O dia seguinte

A Casa anoitece antes do mundo. Às dezessete horas, a sopa anuncia o toque de recolher. O silêncio desaba indiferente ao sol que ainda ilumina os telhados e o burburinho distante que vem das ruas. O portão de ferro se fecha. Em seu passo arrastado, os moradores vão se recolhendo aos quartos para suas colchas de solidão. Deitados em suas camas fingem dormir para que o pouco tempo que têm passe ainda mais depressa. Empreendem essa insônia interrompida por sustos que é a velhice.

No escuro, sentada numa cadeira de balanço, poucos sabem, mas Lourdinha espera. Pegou para si a tarefa de acender as luzes dos jardins. Às cinco horas, na madrugada, estará no mesmo lugar. Desta vez para apagá-las. Sua silhueta se recorta entre as estátuas de santos e viscondes na tarefa de ligar um ciclo no outro. É ela que garante a continuidade da vida na casa de velhos.

“Não se assuste”, tranqüiliza Noêmia. “De noite as enfermeiras entram a toda hora no quarto da gente. Mas é só para ver se estamos bem.” Encosta a porta do apartamento, reclama mais uma vez que não tem mais nem a chave da porta nem a da vida e, em desconfiado silêncio, confere se sua fortuna continua a salvo debaixo do colchão. Só então pode dormir. Não sabe que as notas são de brinquedo, emprestadas de um jogo do neto.

Protegidos em seus quartos, os moradores enganam a todos. Resistem. Deitado na cama, a bengala encostada na poltrona, Paulo chega a chorar de riso. Abafa com gargalhadas as dores de uma vizinha que liga as horas por interlúdios de gemidos. Lembra-se das molecagens que fez na juventude. Depois, banhado em lágrimas, emenda um sonho no outro. Em geral, voa agarrado a asas lisérgicas. Com sorte, tem “sonhos eróticos com a doutora Gisele, com a doutora Ana Lúcia, com a Soraia fisioterapeuta...” . Se estiver especialmente iluminado, expulsa Fred Astaire do palco com um giro do corpo, trai todas as mulheres de sua vida e dança de rosto colado com Cyd Charisse.

Maria Prado só dorme com remédios. Todo dia se apronta para acordar em outro mundo. Absolutamente tranqüila: “Com 101 anos, chego à conclusão de que não tenho nada para me vangloriar, nada para me envergonhar”. Nada. Abre os olhos e lá está ela entre as mesmas paredes, com o jornal na porta. “Onde andará esse Bin Laden?”, investiga, então, sem nada mais interessante para fazer. “Pelo menos que eu me acabe antes do mundo!”

Em outro pavilhão, Vicente Amorim só apaga os olhos depois de conferir o pregão. “Não mando mais em meu dinheiro, mas não consigo dormir sem esperar o resultado da bolsa”, surpreende-se consigo mesmo. Depois tem pesadelos. “Estou nadando num rio e não consigo chegar à margem. Tento alcançar algo e não consigo. Aí acordo. Durante alguns segundos aquilo parece verdade. Preciso respirar fundo, olhar bem para as paredes. E penso: ‘Bom, estou vivo’. Nessa hora é bom estar vivo.”

Guilherme só abençoa a vida porque ela lhe dá tempo de se arrepender de todos os pecados. Lamenta a carne que tanto lhe tentou e pela qual sempre sucumbiu. “Carne, carne. Prazeres de hoje que amanhã não valem mais. Só desejo que Deus me leve com calma.” Enquanto Guilherme chicoteia a alma, Fermelinda rola na cama pela razão oposta. No desespero de não poder pecar, se enche toda de coceiras. Na falta de carícias, tem o corpo coberto de alergias.

Rosa Bela vigia no corredor. No quarto em frente, presa à cama, uma velha mistura bemóis com gemidos. “Você percebeu o que ela faz?”, atormenta-se. “Faz a própria melodia. Canta uma canção de ninar para si mesma. Ouço de meu quarto e isso me bota quase maluca.” Rosa se ergue, estende as mãos no interlúdio do corredor deserto, os olhos queimam e ela canta como quem pirografa. Abafa a dor da outra com o som de um amor antigo. Depois submerge no quarto para emergir com o sol. Here is a new day for you and you take it and like it! (Eis um novo diapara você, pegue-o e aproveite-o!). E imediatamente troca todos os móveis de lugar.

De costas para a casa, Noêmia empreende o caminho de volta. Por ora, venceu. Uma filha a resgatou. Atravessa o portão de ferro, a vida inteira espremida numa mala de mão.



Artigo de ELIANE BRUM
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).